19/05/2009

Um sentinela na sua guarita

aos frequentadores do bar e petiscaria Estátua De Sal
MMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM
Eu estava puto da minha vida porque o Tio Louco Do Amarcord não parava de gritar sobre o tal Projeto Universidade Sem Fronteiras que começara a funcionar logo depois da minha fuga para o lado mais sensato das fronteiras universitárias, o lado de fora.
“Não seja cretino. Páre com essa merda!”
Entretanto, ele não parou de falar e falou da verba generosa, em cash, que os coordenadores de departamento ganhariam e que, de certo, gastariam menos em extensão universitária do que em silenciosas reformas nas próprias casas como, por exemplo, a construção de invejáveis edículas com piscina, churrasqueira e, quem sabe, sauna bem científica. E falou dos bajuladores da Empresa Junior, o séquito de alunos que costuma grudar no saco dos mestres em projetos assim tão... edificantes. Em suma, o Tio Louco Do Amarcord nem prestou atenção no meu pedido. Falou da coroa de louros e da viagem para a França que a menor de todas as nulidades tinha recebido das mãos do próprio governador.
Eu estava puto. Olhei para fora. Os primeiros animais noturnos chegavam e, num relance, avistei a Filha Do Nabokov que, chamuscada pelo poente dourado norte-paranaense, acabava de ocupar o seu posto na esquina. À luz do dia, sem batom e sem a palavra cacete na boca, até que ela passaria bem – e passaria melhor ainda, eu pensei, caso quem olhasse não residisse nesta cidade – pela filha de algum Médico, do Juiz de Direito, da Diretora da Escola Normal, de algum Vereador, do Prefeito, enfim, ela passaria muito bem por qualquer ser humano normal do sexo feminino em fase de crescimento.
Naquele instante, voltando-me para dentro, arquitetei cair fora também das fronteiras daquele bar.
Ele ficaria contrariado. Ficaria ofendido, mas que ficasse, então, ofendido e contrariado. Afinal de contas, a nossa decisão de fazer silêncio a respeito daquele ninho de hipocrisia e corrupção chamado universidade não valia mais nada para ele.
“Até logo Tio Louco Do Amarcord! Você é um tratante. Até mais.”
“Fique aí! Você precisa entender que é difícil pra mim falar de outra coisa. Eu ainda trabalho lá! Preciso desabafar meu amigo.”
“Ah, então espere anoitecer e pague um pouco mais para a menina! Quem sabe, a Filha Do Nabokov não te serve de confidente essa noite por alguns reais a mais! Heim?!”
“Até logo então!”
“Até logo!”
Ontem à noite, saí mesmo abatido lá do meu refúgio. O ambiente é familiar de verdade a despeito da rua escura e dos habitantes noturnos. De todos os bares da cidade, o Estátua De Sal é único. Diante do seu balcão, eu jamais me sinto como se estivesse numa cancela e fosse um policial aduaneiro. Em Terracota, seja lá onde for, dentro ou fora da casa paroquial, do mictório da estação rodoviária ou da universidade estadual das edículas, existem apenas dois lados. A cidade inteira é dividida ao meio.
Quando me indisponho com alguém por aqui, procuro sempre descobrir quem foi o avô ou o bisavô do fulano. Depois, eu percebo que os meus bisavós nem chegaram a vir e que os meus avós só chegaram quando a cidade já existia, ou seja, muito tempo depois que a linha demarcatória já estivesse firmemente desenhada nas ruas e nas almas dos cidadãos.
“Boa noite Professor!”
“Não sou mais.”
“O Tio Louco Do Amarcord é. Ele está por aí?!”
“No Estátua menina. Cuide-se!”
“O senhor também.”
Expandir as fronteiras é com ela! pensei. Quantos anos faltam ainda para que a Filha Do Nabokov entre na universidade? Ah, realmente, quando acontecer os canalhas encontrarão uma nova utilidade para todas aquelas edículas. O Projeto Universidade Sem Fronteiras, então, terá sido útil.
Enquanto eu caminhava, assistindo à chegada da noite, pensei também nas humilhações que havia sofrido em nome da Ciência e da Razão.
Filha Do Nabokov, minha princesa, dois anos atrás me considerava um iluminista. Eu valorizava o conhecimento e também a transmissão do conhecimento. Daí me ferraram porque algumas edículas não saíram conforme os planos, ficaram medonhas, elas não tinham sauna, piscina ou churrasqueira – sim a culpa foi toda minha! – e agora eu estou aqui como um sentinela dentro da sua guarita. Uma criatura limítrofe. Apartidária. Tudo bem para você?! Quem me dera, então, minha perdidinha, uns minutos a mais no Estátua, meu território neutro! Quem me dera se o Tio Louco Do Amarcord tivesse calado a boca e me poupado da minha decepção com o artesanato intelectual que se faz lá dentro da universidade! Eu lamento, lamento profundamente, mas, assim mesmo, creio eu, muitas coisas ainda podem ser explicadas racionalmente nesta porcaria de lugar.
Terracota é uma cidade medíocre. Possui trinta e poucos mil habitantes e até hoje traz o estigma de uma velha contenda.
Na época, Terracota ostentava a exígua condição de capela-empório-barbearia-farmácia. Inexistiam as universidades, uma pública, outra privada, ambas risíveis tanto administrativa quanto institucionalmente, bem como as alamedas mal iluminadas onde, ao cair da noite, compram-se ilusões pulverizadas na Colômbia e cheira-se até o nariz sangrar na companhia de burgueses pedófilos e crianças miseráveis de todos os sexos. Terracota era uma vila. Nela tampouco existiam os famosos currais afastados do centro onde agora se confinam e engordam eleitores que, de quatro em quatro anos, ganham cidadania, tapinha nas costas e uma indiscutível importância apesar da sujeira, do analfabetismo e da intensa receptação de eletro-eletrônicos indebitamente apropriados nas casas ao redor do Passo Municipal e da Igreja Matriz. Quase nada, enfim, da moderna infraestrutura terracotense estava disponível naqueles anos iníciais do século XX.
Certa feita, numa das mesas engraxadas do empório recendente a fumo e a merda de galinha, dizem, aconteceu a cisão. Entre rosnados getulistas e silogismos lacerdistas, o rico fabricante de tijolos e fazendeiro local cuspiu no rosto do rico fabricante de açúcar e fazendeiro local que, naturalmente, revidou numa escarrada verde-pavilhão. Consequentemente, os pioneiros se dividiram em dois grupos rivais, o grupo dos oleiros e o grupo dos canavieiros, ou seja, cada meia-dúzia de famílias do vilarejo migrou para um dos pólos oligárquicos vigentes onde, aliás, até hoje estão representados pela sua descendência indecente.
Meus avós chegaram mais tarde. Por isso, eu não me acerto por aqui.

4 comentários:

  1. Bem, certamente Terracota não deve ser um dos melhores lugares para se viver...mas tem lugares piores também. E sem fronteiras.

    Isso é, acho...

    http://grooeland.blogspot.com

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  2. Po, gostei do teu texto. Muito bem escrito, tem qualidade.
    Espero ver coisas novas mais pra frente.
    Posso colocar um link do teu blog no meu?
    http://bostoievski.blogspot.com

    Abraços
    André

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  3. André e Groo! Estou muito grato. André, pode colocar um link lá sim. Vou colocar um para teu blog aqui.

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  4. Realmente, muito bacana o seu texto.

    Um sarcasmo agradável aos olhos e apimentado ao paladar.

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