28/05/2009

Opinar a respeito

MMMMMMMMMMMM
Desde que redescobri o prazeroso fio das idéias grafáveis, o meu encontro vespertino com o bestiário terracotense tem sido breve. Para ser exato, saio do meu trabalho numa completa fissura. Quero chegar acordado. Plasmar, enquanto escrevo, um grande número de costumes, usos e paisagens livre de distorções. Por isso, eu não bebo nem dou muita corda. Restrinjo-me a espiar um pouquinho as aberrações. Há uma semana, desde a última terça-feira, ando parcimonioso. Não me demoro. Marco presença.
Apesar do fascínio e do meu desejo incontinente de ficar só na escrita das minhas crônicas, dou uma passadinha no Estátua De Sal — à maneira de um beija-flor.
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Quarta-feira, 20 de maio
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“Você já vai?!”
“Preciso ir.”
“Mas não foi, de novo, alguma coisa que eu falei?”
“Claro que não.”
“Está doente?”
“Claro que não.”
“Você nem bebeu!”
“Até logo!”
“Até.”
Invariavelmente, o Tio Louco Do Amarcord sente remorso. Um erro, de fato, ele ter tocado no assunto proibido. Naquela tarde, o meu amigo discutia política com algumas pessoas. Vendo-me chegar, pediu licença para uma das nulidades, perguntou-me do dia, da minha opinião a respeito — e também do que eu achava a despeito —, se a Dilma, o Lula e os demais integrantes do Partido Petulantista Esmoleiro queimariam ao longo da eternidade, enfim, perguntou se eu tinha visto a Filha Do Nabokov lá fora e, naturalmente, protestou contra a minha sangria desatada.
Enquanto me afastava do Estátua De Sal, lembrei-me de cada um dos homens que lá conversavam. Por alguns instantes, temi pelo meu amigo. Liguei o scanner. Passando em revista um bosque inteiro de genealogias. Eu parei. Olhei ao redor. Nem um gole, mas urinei. Mijei desdenhosamente sobre aquelas vetustas e paquidérmicas raízes.
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Quinta-feira, 21 de maio
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Naquela tarde, aproveitei para opinar a respeito. O Tio Louco Do Amarcord estava sozinho. Resolvi dar umas batidas extras com as minhas asas de colibri.
“Mudemos de assunto.”
“Falamos, então, do quê?”
“De qualquer coisa. Menos de política.”
“Está bem.”
Olhei as horas entre duas grandes bicadas na flor.
“Quer saber de uma coisa?”, disse eu. “Já vou indo. Até logo.”
Sóbrio, fui para casa. Regozijei-me na escrita.
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Sexta-feira, 22 de maio
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Quando entrei no Estátua De Sal, nenhuma pista do Tio Louco Do Amarcord.
“Onde está ele?”
“Sabe aquela menina?”, disse o proprietário.
“Sei. Mas... Tão cedo!”
“Ela pediu ajuda.”
“Por quê?!”
“Um grande pedaço de carvão entrou num dos olhos da coitada.”
“Pronto-socorro?”
“Imagino que sim.”
“Tanto melhor”, falei comigo. “Estou ansioso para retomar os meus textos. Mas espere... Hoje é sexta-feira! Infelizmente, nada escreverei. Tenho um compromisso na Confraria Dos Notáveis Terracotenses.” Observação: A reunião é secreta.
Cheguei cansado, adormeci rapidamente e acordei assustado, lá pelas tantas, por causa de um pesadelo: nu, entre as cusparadas do rico fabricante de tijolos e fazendeiro local e as escarradas do rico fabricante de açúcar e fazendeiro local, eu lia em viva-voz o secretíssimo livro de atas da Confraria Dos Notáveis Terracotenses. O meu castigo seria horroroso.
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Sábado, 23 de maio
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Esfriou. Passei no Estátua De Sal, bebi um conhaque sozinho, desejei estar acompanhado — a fim de opinar a respeito — e voltei para o meu teclado.
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Domingo, 24 de maio
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Acordei cedo. Quando amanheceu, eu já tinha terminado a primeira versão de dois dos meus próximos posts — aguarde neste mesmo endereço. Conferi a repercussão. Pessoas haviam deixado comentários! Então eu desejei escrever com afinco até a hora do almoço, mas o dia estava lindo. Em Terracota, os melhores dias têm imaginárias manhãs azuis. Você só precisa olhar para o céu e jamais abaixar a cabeça enquanto imagina.
Ordinariamente, oleiros e canavieiros trabalham aos domingos. Além dos extensos canaviais em horizontes incandescentes, diversas chaminés cônicas liberam a fumaça leve e pesada para o meio ambiente. Os olhos azuis do dia feridos pelo negro fumo. Nem toda a água boricada do mundo bastará! Um cisco incomoda os olhos nos olhos da manhã que jamais terminam em literatura de qualidade: injetados de sangue. Ao longo da tarde, a fração mais densa da fuligem precipita sob a forma de pequenos caracóis de carvão.
Tais volutas, na sua existência minúscula, fazem todos os tipos de peripécias. Invadem os grandes poros da cidade. Imiscuem-se entre as fibras da roupa que seca no varal. Causam sinusite, asma brônquica, sangramentos respiratórios e, a médio e longo prazo, cânceres dos mais diversos, inoportunos ou não, eleitoreiros ou não, que, a curtíssimo prazo, oneram o Sistema Único de Saúde.
“Há uma lei — é o que dizem — que proibe as queimadas. Logo entrará em vigor.”
“Uma ova!”
“Conversa pra boi dormir!”
“Ouço essa mentira desde que nasci!”
“Trata-se de uma lenda urbana e rural.”
À tardinha, refletindo sobre a incompatibilidade entre os colibris e o clima frio, resolvo prolongar a minha participação no debate. Eu já tinha escrito pela manhã. Apareci no Estátua. Bebi apenas o suficiente para ignorar a vinheta do Fantástico, logo mais.
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Segunda-feira, 25 de maio, direto do meu refúgio
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“Sabe, Tio Louco Do Amarcord, vai acontecer o mesmo. Lembra da imagem do zé-ninguém-vencedor-pelo-próprio-esforço? Pois bem, deu no que deu nosso salvador ex-torneiro mecânico, super-paladino da justiça social... Deu no que deu!”
“Minha nossa, vejo que você voltou ao normal!”
“A doença da Dilma vai virar outro novelão mexicano. Uma pena. Verdadeiro desrespeito ao sofrimento humano. Enfim, a mesma isca melodramática para a clientela do partido pagador de esmolas morder.”

Um comentário:

  1. "Em Terracota, os melhores dias têm imaginárias manhãs azuis. Você só precisa olhar para o céu e jamais abaixar a cabeça enquanto imagina"
    Muito Bom!

    André

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