28/05/2009

O mecenato da anfepramona

MMMM
Ao ruído antiliterário, a um só tempo matéria-prima de histórias corrosivas, o meu protesto e o meu apreço. É graças a ele — e também a despeito dele —, que termino de redigir os meus contos.
Tal e qual entre nós, o casal agridoce mais monocromático do condomínio, pobreza e riqueza de tolerância coexistem nas relações que cultivo com a matéria bruta do meu labor ficcional: golfadas de Red Bull no capacho da entrada, zappings de mp3 automotivo no estacionamento e comentários acerca do Youtube, lá fora, no corredor.
Duas horas atrás, com a sensação do dever cumprido transbordando aqui dentro, irritara-me o teu círculo de amizades. Anfetamina, bijuterias e roupitchas; tudo pago pelo chifrudo aqui! Deixe estar... Ainda vou para fora, recolho todos os pen-drives e sigo empalando cada miguxo com o seu próprio brinquedinho! Juro que faço e ainda desço a fim de incendiar você, o garoto e o reluzente off-road prateado. Alguma dúvida? Frio esclarecimento. Quer pagar para ver?! Frio esclarecimento. E agora tranqüilo sobre você, traço coordenadas entre o ringtone das ruas e a sua preferência por me chatear depois do coito.
Pressiono você contra o colchão, paro — frio esclarecimento, penso — frio esclarecimento —, rezo — frio esclarecimento —.
Há um paralelo, de fato, entre os indícios da tua existência longe dos meus olhos, a sinfonia dessa manada de viciados com a qual você anda e as comparações que você sugere na cama. Sim, é preciso vigiar. Senão o cara do estacionamento — a pessoa com quem você fica depois que todo mundo já passou por aqui —, ganhará a eternidade. Um sem-número de anos, na forma de cinzas, a te bolinar o vão das pernas sem que eu sofra nem um pouquinho. Já pensou?! Se me descontrolo heim?! Daí é chega daquela história de sofrer aqui em cima toda vez que uma música não é interrompida, lá embaixo, no estacionamento, antes de chegar ao fim no mp3 do off-road. Já pensou, querida, se me descontrolo?
Bem, por enquanto, graças ao frio esclarecimento, não é assim que acontece. Há sempre uma longa pausa entre as rajadas de zappings. Músicas e mais músicas — algumas com início, meio e fim — embalando aqueles dedos dentro de você. Quando termina, você sobe, deposita o dinheiro na minha carteira e pergunta se consegui escrever. Frio esclarecimento.
Livre do meu ciúme, repleta da certeza da impunidade, você desaparece outra vez e eu escuto a porta do box correr.
“Preciso de um longo e gostoso banho.”
Confiro nota por nota. Duas. Três. Quatro vezes. Você reaparece. Pede amor como sempre faz depois do banho de água e cremes. Babujo elogios no teu pescoço, a melhor vendedora de inibidores de apetite do país! Pouco importa. Seguem-se as queixas, algumas tragadas no cigarro mentolado e as tais comparações.
“Amanhã, quando for roubar uma farmácia, vê se pega um daqueles azuis!”
Primeira vez. Nunca me importei até agora. Palavra. Se te aperto tão violentamente a garganta, é por causa da minha fraqueza. Hoje, não sei muito bem o porquê, descambei na indisciplina. Esqueci de fortalecer a minha fé no frio esclarecimento, quinto capítulo do best-seller de auto-ajuda que você me deu. Lembra? Foi assim que larguei o emprego e comecei a roubar farmácias a fim de me dedicar à literatura, o sonho da minha vida. Roubar para você vender.
Naquele tempo, queixava-me de pavor, mas você comentou sobre o livro de auto-ajuda. Fiquei corajoso. As instigantes metáforas contidas naquelas páginas, especialmente o capítulo cinco, A pantera incinerada, impulsionaram a minha vida e não saíram até hoje da minha mesa de cabeceira.
“O frio esclarecimento é um aprendizado sem decepção. Nele, paixão alguma é despertada. Nenhum paradigma bloqueia o raciocínio. Trata-se, a propósito, de uma distinção provocativa entre as pessoas.”
“Distinção provocativa?”
“Continue a ler querido!”
“Vamos ver então...”
“Se a maioria dos homens treme no instante da descoberta, uns poucos vivem com serenidade a repentina queda de velhas convicções e, lamentavelmente, acabam se transformando em alvos preferenciais da inveja e da discriminação.”
“Isto é coragem! Ora, se é coragem, por que diabos não simplifica e diz: coragem?”
“Neurolingüística meu amor.”
“Neurolingüística? Boa merda!”
Fui resistente, grosso e sacana, porém aceitei. Demorei algum tempo, mas afrouxei. Tanto que até faz falta o modo como você me incentivava naqueles dias.
Eu queria escrever, você me jogou para cima. Inteligente, logo encontraria um meio de sustentar a escrita! Tinha razão. Encontrei. Mal terminou a semana e você já me chamava da drugstore cowboy.
Tal e qual acontece entre nós, o casal descolado menos flexível do condomínio, azar e sorte andam lado a lado quando se trata da lapidação de algumas idéias brutas em parágrafos mais ou menos verossímeis: você desistiu de mim. Não me abandonou completamente, é verdade, prosseguindo com as vendas imprescindíveis, mas ficou claro que se transformou sensivelmente quando enjaularam um dos nossos fregueses... A polícia chegou tão perto naquela noite iluminada!
Enquanto revistavam o apartamento vizinho, escutei cada nota perigosa como se fosse a sua turma, lá fora, conversando misérias, emporcalhando o meu tapete. Depois, saí na garoa, refleti um bocado e produzi um ótimo conto ainda antes de você chegar, o segundo que consegui escrever com dignidade.
É graças a ele, pensei comigo, ao ruído antiliterário, matéria-prima de histórias corrosivas, que ainda mantenho a saúde mental.
Foi de lá para cá meu amor. Você sugeria desdenhosamente que além de anfepramona eu roubasse comprimidos de Viagra, mas, da minha parte, apegado à filosofia do frio esclarecimento, eu produzia uma história melhor do que a outra e suportava humilhações.
Hoje não agüentei. Assim que você chegou, perguntei se os teus amigos haviam subido e também respondi: “Já estão dormindo faz um tempão.”
Tranqüilo, deitado sobre o teu corpo, não penso mais em bater. Acabei o livro, é verdade. Poderia te mandar às favas, e também toda a clientela de viciados que te rodeia, mas por enquanto eu não posso, preciso me recompor esta noite, abastecer a motocicleta, invadir aquela farmácia na Vila Prudente e iniciar a segunda fase do meu trabalho, pois ainda não tenho editora.
“Vai sair? Já?!”
“Digitar uma coisa que faltou no meu livro. Fique quietinha. Eu não demoro.”
Enquanto você suspira, imagino a dedicatória quase negligenciada.
“Mas você não terminou?”
“Estou a um passo.”
“Então volte logo.”
Ao ruído antiliterário — à matéria-prima das minhas histórias — ao principal responsável pela minha loucura.

5 comentários:

  1. Vc quer participar de uma antologia conosco?

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  2. RG, muito bom! Muitas idéias e algumas feridas futucadas. Gostei bastante.

    Abraços.

    André
    (http://bostoievski.blogspot.com)

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  3. É muito bom encontrar quem consiga escrever coisas como você. Passa uma certa certeza.
    Parabéns, sinceramente, uma das melhores coisas que eu já li.

    Beijos
    (http://doceinocenciamorta.blogspot.com/)

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  4. Muito legal o texto! Nunca mais vou esquecer o "frio eslarecimento" rsrsrsrs

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  5. Vou deixar um frio esclarecimento sobre o texto.....Amei!!!

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